terça-feira, julho 21, 2020

A BORBOLETA HELENA.


“Sabe... aquele cheiro delicioso de pastel quentinho?
Eu olhava. As pessoas comiam com prazer. Ela percebeu. Passou sua mão em meus cabelos.
-Filho!...  tenho apenas o trocado para o bonde”
Ela dizia que voava. 
-Você não acredita, ando tão depressa, vou e volto voando.                                          
Podia caminhar, ir onde quisesse.  No posto de saúde, fazer exames médicos, ela sempre soube se cuidar.  
Visitar a Cici, também. 
Passava horas conversando com a amiga Cici. Almoçava, tomava o café da tarde, jantava e dormia no apartamento da Cici. Infelizmente, naquela primavera, a Cici morreu. A vida da Mami também mudou. Ficou um vazio no coração dela. Saudade da Cici... Outono, Inverno, novamente Primavera e a saudade, lentamente, sendo superada.
Malgrado a aparente tranqüilidade, agora, outras dificuldades: as pernas, a visão. Imperava a verdade do tempo que passava. A doença dos ossos se agravando e a impedindo de caminhar. Ela sofria. Ele sofria.
-Mamãe, vou comprar uma bengala, você precisa andar e agora só com bengala.
­-Isso eu não vou usar, não adianta, não me acostumo. - Ela detestava a bengala. Carinhosamente e nervosamente ele tentava convencê-la.
-Mami, você tem que usar a bengala, é para seu bem e se você não andar, vai ficar entrevada e vai acabar numa cadeira de rodas!
Daí em diante ela passou a usar a bengala.
-Agora você tem que sair com a bengala, tem que andar, andar e andar.
-Eu sei... eu sei filho.
Mas era um esforço sobre humano. Tinha dores nos quadris, deformados pela descalcificação. Quantas vezes ele a encontrou no meio da quadra, encostada no muro da casa da vizinha, descansando. Respiração ofegante. Sempre com aquele sorriso meigo que ele ainda hoje vê nas Helenas que encontra pelas esquinas da vida!
_Desculpe senhora! Por favor, por um momento pensei ser uma pessoa querida... 
Afastava-se com os olhos embaçados e aquela forte emoção banhando seu velho rosto. 
-Desculpe, desculpe! Parava para se recompor.
Ela perguntava com orgulho.
-Então estou indo bem, contente com meu progresso?
-Sim, está mamãe, muito bem! Vamos juntos segure-se em mim.
Pouco tempo depois, chegou a cadeira de rodas. “Sim, a maldita cadeira de rodas!” Então, ele a empurrava na cadeira para todo o lado, ele a ajudava nas refeições, na hora de ir para a cama. Ele dava banho na Mami! Sim, ele nunca mais a deixou! Tinha todo o tempo do mundo para ela.
Mas, certa tarde, durante o banho...
-Venha ver uma coisa - ela chamou.
-Sente alguma coisa embaixo do braço, Mami? Dor? Perguntou.
Ela balançou a cabeça, mas uma sombra passou nos olhos dele. Era preciso levá-la ao médico com urgência.
Foram seis meses ou mais de sofrimento, tentando destruir aquele tumor. Radioterapia, Quimioterapia.
O doutor voltou para a sala com uma expressão séria.
-Sinto muito, ela não passa desta noite, disse.
Ficou praticamente mudo, engasgava as palavras. Levou o doutor até a porta com lágrimas nos olhos. Uma noite que ele não mais esquece.
-Mami, como você esta? Sente dor?  -  Ela estava em pele e ossos. Magra, definhando dia a dia.
-Não filho. É pena que eu não possa andar como antes. Eu voava! Sabe... eu voava. Sua voz vinha baixa e a respiração forte.
-Sim, eu sei Mami! Tinha lágrimas nos olhos. Desviou o rosto.

Segurou suas mãos frias, magras. Balançou a cabeça. Saiu para o corredor, depois para o outro quarto. 
Era tarde, ele não dormiu. Podia ouvir a respiração forte. Respiração da morte. Passou-se um tempo infinito. Subitamente, ele se levantou assustado, não ouvia mais nenhum som. Seguiu pelo pequeno corredor iluminado em direção ao banheiro. Agora era um longo corredor, infinito corredor. Sentiu-se perdido no espaço-tempo da sua própria existência.
O quarto na penumbra. A porta aberta, mas ele não entrou. Sentiu medo. Os olhos desviaram-se  para a iluminada parede externa do banheiro. No alto, lá estava: A borboleta Helena!
Com o coração apertado voltou para o quarto.
O sofrimento tinha terminado. O rosto magro. Os cabelos brancos, acariciou-os. Retirou os óculos, ela não ia precisar mais.
Tinha um buraco no estômago e uma dor no peito. Sufocou um soluço. Abaixou a cabeça. 
Quando saiu, a Borboleta Helena tinha desaparecido.
“Mami queria voar”
Ela voara. Sim, ela voou.
Abril, de um certo ano, na solidão de um velho.

Osmar Gomes da Silva - autor de "Rumo ao Paraíso e Outras Histórias".

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