REVISITANDO A POESIA

REVISITANDO FERNANDO PESSOA











NA RIBEIRA DESTE RIO 

Na ribeira deste rio 
Ou na ribeira daquele 
Passam meus dias a fio. 
Nada me impede, me impele, 
Me dá calor ou dá frio. 
Vou vendo o que o rio faz 
Quando o rio não faz nada. 
Vejo os rastros que ele traz, 
Numa sequência arrastada, 
Do que ficou para trás. 
Vou vendo e vou meditando, 
Não bem no rio que passa 
Mas só no que estou pensando, 
Porque o bem dele é que faça 
Eu não ver que vai passando. 
Vou na ribeira do rio 
Que está aqui ou ali, 
E do seu curso me fio, 
Porque, se o vi ou não vi. 
Ele passa e eu confio. 

AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma.                                        
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio, e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.
FERNANDO Antônio Nogueira PESSOA -
poeta e escritor
(Lisboa - Portugal: 13/06/1888 - 30/11/1935)

 REVISITANDO MÁRIO QUINTANA 











AH! OS RELÓGIOS

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são... 
MÁRIO de Miranda QUINTANA - 
jornalista, tradutor, poeta.

(Alegrete-RS, 30/07/1906 - Porto Alegre, 05/05/1994) 

REVISITANDO PABLO NERUDA 













Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.
 
PABLO NERUDA (Neftalí Ricardo Reyes Basoalto)
(Parral-Maule, Chile: 12/04/1904 - Santiago 23/09/1973)


REVISITANDO VINÍCIUS DE MORAES 










SONETO DA FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Marcus VINÍCIUS Cruz e Mello MORAES
Diplomata, dramaturgo, jornalista, compositor, poeta.
(Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 - 9 de julho de 1980)

REVISITANDO VICENTE DE CARVALHO


A FLOR E A FONTE

"Deixa-me fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria, levando a flor.
"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!..."
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria 
Rolava levando a flor.
"Adeus sombras das ramadas,
"Cantigas do rouxinol!
"Ai, festas das madrugadas", 
"Doçuras do pôr do sol"; 
"Carícias das brisas leves"
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descidaComo a da fonte e da flor...
VICENTE Augusto de CARVALHO
Advogado, jornalista, deputado, contista, poeta.
(Santos, 05/04/1866 - 22/04/1924).

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OU ISTO OU AQUILO 

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se isto ou aquilo.
 
CECÍLIA Benevides de Carvalho MEIRELES -
poetisa, pintora,    professora, jornalista. 
(Rio de Janeiro, 09/11/1901 - 09/11/1964) 


REVISITANDO DRUMMOND












POEMA DE SETE FACES

                                                  
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra 
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correr atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul, 
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas: 
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode, 
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo vasto vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução
Mundo vasto vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE -
poeta, cronista, tradutor.
(Itabira-MG, 31/10/902 - Rio de Janeiro, 17/08/1987).

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